A Umbanda: Monoteísmo, Politeísmo e a Natureza do Divino

A questão sobre a natureza teológica da Umbanda — se é uma religião monoteísta ou politeísta — figura entre as mais frequentes e fundamentais para a compreensão de sua doutrina. A aparente coexistência de um Deus Criador único, Olorum, com a veneração de múltiplas divindades, os Orixás, cria um paradoxo que, à primeira vista, pode confundir o observador externo e até mesmo o praticante iniciante. Uma resposta superficial, contudo, não faz jus à complexidade e à sofisticação de sua estrutura teológica.

A Umbanda, como religião genuinamente brasileira, anunciada em 1908 por intermédio do médium Zélio Fernandino de Moraes e do espírito Caboclo das Sete Encruzilhadas, define-se como uma profunda síntese de múltiplas influências: africana, indígena, cristã e espírita. É precisamente nesta natureza sincrética que reside a chave para decifrar seu modelo divino. O aparente politeísmo revela-se, sob uma análise aprofundada, uma complexa teogonia na qual os Orixás não são deuses independentes, mas sim manifestações, qualidades e mistérios do Deus Único.

Olorum, o Princípio Único e Indivisível – O Pilar Monoteísta

A base de toda a teologia umbandista é a crença inequívoca em um Deus único, supremo e criador de tudo e de todos. Este pilar monoteísta é o ponto de partida para a compreensão de toda a sua estrutura divina. As fontes doutrinárias utilizam uma variedade de nomes para se referir a esta entidade suprema, o que reflete a rica herança cultural que compõe a religião:

  • Olorum ou Olodumaré: Termos de origem Yorubá, frequentemente empregados por autores como Rubens Saraceni e Douglas Rainho, que podem ser traduzidos como “Senhor do Céu” ou “Senhor do Destino”.
  • Zambi: Um termo de origem Bantu, também utilizado para se referir ao Deus Criador.
  • Tupã: Nome de origem indígena, apresentado por F. Rivas Neto (Arhapiagha) como o “Primeiro Nome Sagrado” de Deus na Umbanda.
  • Deus: O termo de raiz cristã, amplamente utilizado e compreendido no contexto brasileiro.

Esta diversidade de nomes não indica uma pluralidade de deuses, mas sim a capacidade intrínseca da Umbanda de traduzir um conceito universal — a existência de um Criador Supremo — para as diferentes linguagens culturais que a formaram. Este fato, por si só, reforça o caráter sintético e inclusivo da religião. Os atributos de Olorum são descritos como absolutos: Ele é a “Suprema Consciência-Una”, o “Divino Criador que tudo criou”, a origem de todas as energias e manifestações. É um ser ao mesmo tempo transcendente e imanente, “tão grande como o Universo infinito e tão perto como o bater do nosso coração”.

A afirmação explícita do monoteísmo por múltiplos autores, representando diferentes vertentes da Umbanda, como a Sagrada e a Esotérica, não é uma mera coincidência, mas a expressão de um pilar doutrinário central e consensual. Rubens Saraceni, por exemplo, dedica um capítulo de sua obra para declarar: “A Umbanda é Monoteísta”, definindo o termo como o “sistema que admite a existência de um único Deus”. Douglas Rainho e Arhapiagha corroboram essa visão, estabelecendo uma hierarquia divina que parte invariavelmente de uma única fonte. Isso demonstra que a questão fundamental não é

se a Umbanda é monoteísta, mas sim como ela estrutura essa crença para incorporar a veneração aos Orixás. A tarefa, portanto, é explicar essa arquitetura teológica única.

Os Sagrados Orixás – Manifestações do Divino, Não Deuses à Parte

O ponto crucial para desvendar o aparente paradoxo da Umbanda reside na correta compreensão da natureza dos Orixás. Eles não são deuses independentes, com vontades próprias e em competição, como se observa no politeísmo clássico. As fontes doutrinárias os definem de maneiras que reforçam sua subordinação e emanação do Deus Único:

  • Mistérios e Qualidades de Olorum: Os Orixás são descritos como “qualidades originais de Olorum” e “manifestações e individualizações divinas”. Cada Orixá representa uma faceta ou um poder primordial de Deus — como a Lei, o Amor, a Justiça, o Conhecimento — que se manifesta ativamente na Criação.
  • Poderes de Deus Personificados: Eles são “o poder de Deus manifestado de forma ‘personificada'” , energias vivas e divinas que atuam diretamente na vida dos seres.
  • Tronos Divinos e Regentes: Os Orixás são também conceituados como “Tronos de Deus” ou “divindades que velam pelos planetas”, atuando como regentes e guardiões de aspectos específicos da Criação e da evolução.
  • Potências Cósmicas e Senhores da Luz: Na vertente esotérica, são definidos como “Potências Cósmicas” ou “Arashas” (Senhores da Luz), coordenados dentro de uma hierarquia que emana da “Consciência-Una”.

A relação entre Olorum e os Orixás é estritamente hierárquica. Olorum está no topo, como a fonte incriada, e os Orixás são Suas emanações. Saraceni estabelece uma analogia direta com as religiões abraâmicas para elucidar este ponto: “Ou não é verdade que no monoteístico segmento religioso judaico-cristão-islamita também se crê na existência de um único Deus e em uma corte de seres divinos denominados como anjos, arcanjos, querubins, serafins, etc.?”. Nesta comparação, os Orixás ocupam uma função análoga a essas hierarquias celestiais: são os executores da vontade divina, os ministros da Criação.

A teologia umbandista vai além, explicando a multiplicidade de entidades através de uma cosmogênese complexa. Um Orixá original, como Ogum (a qualidade ordenadora de Deus), contém em si todas as outras qualidades divinas. Ao manifestar essas qualidades secundárias, ele se desdobra e se hierarquiza, dando origem a “muitos ‘Oguns'” — como Ogum Sete Espadas ou Ogum Beira-Mar — cada um responsável por um campo de atuação específico da Lei Divina.

Essa concepção nos permite ir além da personificação mitológica e entender os Orixás como “frequências vibracionais” de Deus. Os textos utilizam uma linguagem de “energias”, “vibrações” e “essências” para descrevê-los. Assim, cultuar um Orixá não é adorar um deus separado, mas sintonizar-se com uma frequência específica do Divino Criador. Louvar Ogum é conectar-se com a vibração da Lei e da Ordem de Olorum. Venerar Oxum é sintonizar-se com a vibração do Amor e da Concepção de Olorum. Essa perspectiva resolve o paradoxo de forma elegante: a pluralidade de Orixás não fragmenta a unidade de Deus, mas descreve as múltiplas facetas de Sua manifestação.

O Setenário Sagrado e as Sete Linhas – A Estrutura da Manifestação Divina

A teologia da Umbanda é notavelmente organizada em torno do número sete. O conceito do “Setenário Sagrado” descreve as sete essências ou vibrações primordiais de Deus que regem a vida e sustentam a Criação. Estas sete essências fundamentais são:

  1. (Essência Cristalina)
  2. Amor (Essência Mineral)
  3. Conhecimento (Essência Vegetal)
  4. Justiça (Essência Ígnea)
  5. Lei (Essência Eólica/Aérea)
  6. Evolução (Essência Telúrica)
  7. Geração (Essência Aquática)

Essas essências dão origem às “Sete Linhas de Umbanda”, que são as sete grandes correntes de força e trabalho espiritual. Cada linha é regida por um par de Orixás — geralmente um polo masculino/passivo e um feminino/ativo, embora a polaridade possa variar — que atuam como os “movimentadores” daquela essência divina. Por exemplo, a Linha da Fé é regida por Oxalá e Oyá-Tempo (Logunan), enquanto a Linha da Lei é regida por Ogum e Iansã.

Ainda que os nomes dos Orixás regentes possam apresentar pequenas variações entre diferentes autores e vertentes — por exemplo, Arhapiagha menciona as vibrações de Yorimá e Yori, que Saraceni reinterpreta como as linhas de Obaluaiê e Ibeji (Crianças) —, o conceito de uma estrutura setenária baseada em vibrações primordiais é notavelmente consistente, demonstrando um fundamento doutrinário compartilhado.

A própria existência do Setenário Sagrado, apresentado como uma “Coroa Divina” emanada de Olorum, é um forte argumento em favor da natureza monoteísta da Umbanda. A organização da diversidade divina em uma estrutura matemática e ordenada é uma característica de teologias que buscam a unidade na multiplicidade, como a Cabala, e se distancia dos panteões do politeísmo clássico, que são geralmente mais fluidos e baseados em mitos e genealogias. O Setenário funciona, portanto, como uma matriz teológica, um “mapa” da manifestação de Deus, onde os Orixás são as coordenadas que nos guiam de volta à Fonte Única, e não destinos independentes.

Um Monoteísmo Inclusivo – Distinções Cruciais e a Síntese Brasileira

A Umbanda se diferencia tanto do politeísmo clássico quanto de outras religiões de matriz africana, como o Candomblé, por meio de uma reinterpretação teológica consciente. A principal distinção em relação ao politeísmo é a soberania de Olorum: todos os Orixás emanam d’Ele e atuam em harmonia dentro de uma Lei Divina única, sem os conflitos e vontades próprias que caracterizam os deuses de outros panteões.

A comparação com o Candomblé é particularmente elucidativa. Uma das distinções mais perspicazes é que “a Umbanda universaliza os Orixás, enquanto o Candomblé os individualiza”. Na Umbanda, Ogum é uma força universal da Lei, acessível a todos. No Candomblé, a relação é mais pessoal: cada iniciado tem o seu Ogum individual. Além disso, a Umbanda dispensou rituais como o sacrifício de animais, não por simplificação, mas como uma decisão teológica que reflete uma compreensão diferente da natureza dos Orixás, onde a fé é o principal elemento de ligação, e não o ritual de sangue. A existência de vertentes híbridas, como o “Umbandomblé”, serve para ressaltar que existem modelos doutrinários distintos e “puros” para cada religião.

Outro ponto fundamental é a função das entidades ou guias espirituais (Caboclos, Pretos-Velhos, Crianças, Exus, etc.). Eles não são os Orixás, mas espíritos trabalhadores que atuam sob a irradiação dos Orixás. Os Orixás são as Divindades-Regentes das Linhas, enquanto os Guias são os trabalhadores dessas linhas. Essa distinção hierárquica reforça ainda mais o modelo não-politeísta.

Considerando esses pontos, a fundação da Umbanda pode ser vista como uma verdadeira “reforma teológica”. Ela não foi apenas a criação de mais um culto, mas um ato consciente de reinterpretar as divindades africanas dentro de um novo paradigma monoteísta, universalista e focado na caridade mediúnica, alinhado com as influências cristãs e espíritas que marcaram seu nascimento. A Umbanda, portanto, não é “politeísta” porque sua própria gênese foi um ato de reformar e sintetizar diferentes visões do sagrado sob a égide de um Deus único.

Saravá, Axé, Mojubá!

Raphael PH. Alves

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Raphael PH. Alves

Sacerdote Espiritual e de Umbanda, Escritor, Hipnólogo, Mago e Mentor de Desenvolvimento Pessoal e Espiritual, Fundador do Templo de Umbanda Sagrada Arqueiros do Flecha Dourada, Raphael PH. Alves tem dedicado os últimos 28 anos ao desenvolvimento de métodos que auxiliam as pessoas a despertarem suas virtudes como seres humanos e espirituais, para que assim possam atingir o máximo potencial de suas vidas se livrando de crenças limitantes e dogmas que os aprisionam. PH já transformou pessoalmente a vida de mais de 5 mil pessoas em palestras e cursos, alcançou mais de 4 milhões e 400 mil visualizações em seu canal no YouTube, e é autor de 3 livros: “Chakras na Umbanda”, publicado pela Madras Editora, o romance espiritual “Encantado”, publicado pela Editora Mariwô, e seu último livro “Exu: Descubra o Significado do Nome do Seu Exu”.

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